Nesta minha primeira prestação no blog, apresento-vos umas breves reflexões de índole filosófica sobre um estudo publicado há 2 semanas na JAMA Neurology - um estudo observacional intitulado “Frequency and Underlying Pathology of Pure Vascular Cognitive Impairment” (JAMA Neurol. 2022; doi: 10.1001/jamaneurol.2022.3472).
Trago-vos este tema pois o título chamou-me logo a atenção. Isto porque, como internista que sou, 1) já me deparei com muitos doentes com diagnósticos e rótulos de demência vascular, 2) eu própria já me senti impelida a assumir (sem o poder comprovar) a causa vascular para a demência de determinado doente, 3) este é um distúrbio relativamente comum na prática clínica, sobretudo da Medicina Interna, e que estando a sua prevalência a aumentar, penso que ainda não conseguimos encontrar as melhores ferramentas ou orientações clínicas na vida real para assumir como verdadeiro este diagnóstico.
Enquanto aspirante a filósofa, não deixo de me confrontar com várias questões, nomeadamente quanto ao valor epistémico de um diagnóstico puramente clínico (a demência vascular existe mesmo enquanto entidade por si própria, com propriedades próprias?) e o seu valor instrumental (admitimos este diagnóstico porque somos capazes de lhe ver uma função/utilidade, esta uma visão mais pragmática). Como sabemos, um diagnóstico, um rótulo, não só tem implicações na nossa prática clínica e atitudes terapêuticas, como na forma como olhamos e pensamos o doente à nossa frente. Sabendo que a questão da prevalência, e necessariamente dos critérios de diagnóstico da demência vascular (pura), é um assunto ainda mal resolvido na Neurologia, percebi logo que este estudo seria interessantíssimo e aplaudo a iniciativa, pois vem tentar contribuir com mais uma peça de conhecimento no grande puzzle que é o conhecimento científico. Para além disto, é um trabalho muito meritório em que os autores conseguiram avaliar 1767 doentes submetidos a autópsias (!!!), que estes doentes fossem anualmente avaliados cognitivamente, e com uma média de seguimento de 8.4 anos!
Não sendo o objetivo deste texto entrar em profunda análise crítica metodológica, gostava de salientar alguns pontos que a meu ver acabam por ter impacto em como interpretamos os resultados.
1. Os autores focam-se em passar a ideia de que alterações cognitivas decorrentes de alterações vasculares puras não são raras, e não são. Ainda assim, as alterações patológicas vasculares puras são aquelas que menos se repercutem clinicamente – quase metade dos doentes acabou por não apresentar qualquer alteração cognitiva! Portanto, foi um achado...
Daqui é precisa extrema cautela, pois necessariamente o envelhecimento dos órgãos e tecidos acontece e vamos sempre encontrar muitas alterações patológicas em doentes idosos. Mas daí a terem alguma relevância clínica e real vai uma grande distância, pelo que tenho sempre uma postura conservadora a priori. Descrevo alguns dos achados: Idade média à data de morte: 89.4 anos. Dos doentes com alterações vasculares puras, 58% não tinha qualquer alteração cognitiva à data da morte (17% tinha demência). Dos doentes com alterações neurodegenerativas puras, 32% não tinha alterações cognitivas à morte. Dos doentes com alterações mistas, apenas 22% não tinha nenhuma alteração cognitiva, e 57% tinha demência à data da morte! De todos, 32% morreram sem qualquer alteração cognitiva. De todas as demências, só 7.7% eram demências puras vasculares! 21.8% eram neurodegenerativas puras e as restantes demências mistas (estes últimos valores calculei-os eu pelos dados na tabela, acredito que os autores não os tenham apresentado por não lhes serem tão favoráveis).
2. Os autores exageram ainda numa data de ilações e inferências causais implícitas. A título de exemplo, "We hypothesize that vascular treatments, including statins,43 will be effective in prevention of dementia in subgroups of older adults who do not have significant neurodegenerative pathologies, and cerebrovascular disease pathologies are the main cognitive driving pathologies. An observational study using patients’ registries found a lower risk of dementia in patients with atrial fibrillation treated with anticoagulants.44"). Calma, calma. Primeiro, quase metade dos doentes com alterações vasculares não tinha alteração cognitiva nenhuma, e, segundo, a maioria das demências eram de causa mista, portanto tentar isolar os doentes sem alterações neurodegenerativas significativas na vida real (sem recorrer à patologia clínica!) será extraordinariamente complicado, e temos de perceber qual é que poderá ser realmente o impacto de abordar apenas a causa vascular. Terceiro, invocar um estudo observacional (que infere relações de associação!) para dar a entender uma relação de causalidade entre a toma de anticoagulantes (por fibrilação auricular) e a redução do risco de demência vascular revela não só uma pobre noção de Medicina Baseada em Evidência e da natureza das relações de causalidade, como despoleta no leitor uma forma errada de olhar o assunto.
Assim termino, novamente salientando o mérito deste trabalho que, a meu ver, veio mostrar como a ciência, quando bem feita, procura acrescentar novas peças no interminável puzzle do conhecimento científico.
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